Séculos
atrás, desde que fora promovido e abandonara as ruas para se tornar o
responsável por anotar e arquivar a rotina dos anjos da guarda, Checarion
assimilou com o tempo um novo hábito pertinente à sua nova função: checava,
rechecava e checava novamente todas as suas ações.
Foi
o que fez com o caso de Caliel.
Mesmo
com a sentença do anjo da guarda já definida e aplicada, algo incomodava
Checarion. Não sabia bem o quê; uma pulga atrás da orelha, que também morde os
mais elevados seres. Um dia, depois do longo expediente de bater e rebater
carimbos sobre infindáveis relatórios, o arcanjo retirou dos arquivos a
papelada sobre Caliel.
--
Após revisar várias vezes o caso, ficou claro para mim que eu havia cometido um
erro. Um inocente não poderia ser punido por causa de minha interpretação
equivocada – explicou Checarion, em alto e bom som, a Margô, Zé, Baldo, Rimo, o
Diabo e toda população do Inferno.
Ele
continuou com a palavra.
--
Obviamente, Caliel infringiu a Lei 555/88, uma das mais importantes a regular a
conduta dos anjos da guarda. Porém, não se pode analisar os fatos somente pela palavra
crua da lei...
Lúcifer
interrompeu.
--
Você não é advogado, promotor ou juiz! Que baboseira é esta que está
falando?
--
Tens razão. Não sou nada disso. Porém, sou justo. E a Justiça está acima da
Lei.
Checarion
avançou mais um bocado e parou frente a frente ao Capetão.
--
Além disso, descobri que o relatório de Caliel havia sido adulterado!
--
Como assim? – quis saber Margô.
--
Que relatório? – questionou Zé.
--
Pare de falar asneiras, infeliz! – gritou Lúcifer.
O
arcanjo revisor voltou a falar, mesmo assim.
--
Respeita os asnos, Anjo Decaído. Estes seres esforçados não merecem ser
diminuídos pelo veneno de tua língua. Em resposta à pergunta do simpático rapaz
de bigode, apresento-lhes um trecho que havia sido removido do relatório do
anjo da guarda.
No
mesmo instante, Checarion desenrolou um longo pergaminho, escrito de cima a
baixo com as belas e humanamente ininteligíveis letras do alfabeto do Éden. Aos
poucos, no entanto, as palavras ganharam vida, saltaram do tecido e começaram a
rodopiar no ar, combinando-se umas as outras. Ao ponto de se tornarem outra
coisa: a holografia de Caliel.
O avatar do anjo da guarda pôs-se a falar.
--
Sábios senhores, anjos e arcanjos superiores. Fui o primeiro anjo da guarda a
violar a Lei 555/88, que nos impede de tocar em território infernal. Tenho
ciência da indisciplina de meu ato e sei que serei punido com rigor por tal.
Ainda assim, eu não poderia agir diferente. Quando nosso Pai Superior nos
criou, incutiu na natureza de cada anjo da guarda o amor incondicional pelos
humanos e a necessidade do cumprimento do dever de protegê-los, sob qualquer
circunstância, não importa a ameaça. Desta forma, foi inevitável a mim
descer ao Inferno e tentar o resgate da alma de meu protegido. Não consegui. Os
poderes de Lúcifer e seus asseclas eram muito superiores aos meus. Porém, fiz minha parte e cumpri meu dever. Peço perdão pela indisciplina e pelo
fracasso.
A
holografia, de repente, desapareceu, as letras se separaram mais uma vez e
retornaram ao pergaminho. Lúcifer puxou a palavra para si.
--
Este idiota acaba de confessar o próprio crime! Hahahaha! Ele não merecia simplesmente
ter sido banido. Era para ele ter sido mandado aqui para nós! Como dizem os
humanos nojentos: de boas intenções, o Inferno está cheio. Hahahaha! Detesto
imbecis, iria preparar uma sessão de tortura especial para ele.
--
Cala-te – ordenou Checarion – A Assembleia Celestial acatou parecer dos sábios
e juristas do Paraíso e decidiu por extinguir a Lei 555/88. Assim, Caliel está
autorizado a retornar ao nosso convívio e retomar suas funções.
Margô
encheu os olhos de lágrimas. Baldo bateu palmas de felicidade. Rimo
sacudiu as penas da cauda, demonstrando sua alegria, e mesmo Zé esboçou um
ligeiro sorriso por baixo do bigode.
--
Vocês estão loucos!!!??? – berrou mais uma vez o Mestre do Mal – Este Caliel é
um irresponsável! Um desobediente! Um fanfarrão! Um baderneiro! Um desertor! Um
traidor! Como vocês podem perdoá-lo?
--
Quem és tu para nomear os outros como traidor? – questionou calmamente
Checarion – Não há perdão a quem sequer errou. Não é necessário. Em verdade,
Caliel revelou que equivocados estávamos todos nós.
--
Como assim??? – afobou-se Lúcifer.
--
Nenhuma lei pode estar acima da maior de todas as leis.
-- E que diabo de lei é essa??? – perguntou o Capetão.
Checarion
fechou os olhos e respondeu.
--
A Lei da Natureza.
Todos
ficaram atônitos. Depois de uma ligeira pausa, o arcanjo retomou a
argumentação.
--
Não poderíamos punir Caliel por ele ser exatamente aquilo que fora feito
para ser. Fazer isso seria caminhar em sentido contrário à vontade divina.
--
Mas, eu fui punido! Nós todos do Inferno fomos!!! Chama isso de Justiça??? –
gritou um amargurado Lúcifer.
--
Tu não nasceste mal. Tu escolheste o mal.
O
Chefão do Inferno finalmente ficou mudo.
--
Agora, por favor, entregue a garrafa com a alma de Rui Rico à distinta
senhora ruiva, para que possamos ir embora – mandou Checarion.
Sem
escolhas, Lúcifer cumpriu a ordem e esticou o receptáculo às mãos de Margô.
Contudo,
instantes antes de ela apanhar a garrafa, algo muito veloz avançou sobre a
doutora e tomou o objeto para si.
-- Esta alma é minha! – disse um sujeito de capuz negro, pele muito
branca e barba muito preta -- com os dentes todos à mostra.
Nenhum comentário:
Postar um comentário