20. AS PROFUNDEZAS DO MAR ESCURO

     Ele estava cercado de águas tão negras e densas que parecia nadar num lago de petróleo. Com as mãos, ele remava forte, mas não tinha a menor noção para onde estava indo. A certa altura, sem saber direito porque, decidiu mergulhar. Emborcou o rosto para o fundo e foi, glub, glub, glub, descendo, às profundezas.
   No silêncio imenso não se ouvia sequer o barulho das braçadas. Devagar, ele abria espaço. Estava tranquilo, porém, apreensivo. Sabia que inevitavelmente encontraria algo – só não sabia se bom, se ruim.
    Então, ao longe, muito longe, um pontinho de luz esverdeado apareceu. A novidade fez com que ele se deslocasse em direção à incandescência. A cada movimento, a luz ficava mais próxima – e mais bonita.
    Era a saída das trevas? A entrada de uma cidade perdida no centro do lago negro? O fim do túnel? A porta do céu? Que tesouro era aquele, que intrigava seu raciocínio e deixava-o tão curioso a ponto de ele não querer pensar em mais nada?
    Aumentou a velocidade, queria resolver logo aquilo. Remou com força, bateu as pernas como se fosse a hélice de um submarino e exigiu fôlego dos pulmões. O sacrifício foi recompensado: a luz estava a dois ou três metros do seu alcance.
   Que linda!, pensou ele, boquiaberto e com os olhos estatelados. Incontáveis pontinhos verde-limão movimentavam-se de um lado ao outro em um receptáculo transparente do tamanho de uma cabeça - como se fossem motocicletas dentro do globo da morte. A dança entre eles atiçava as energias e liberava a luz.
     - Como é belo!, tentou dizer, soltando borbolhas pela boca, que refletiram o brilho encantado.
    O que ele não percebeu é que, por trás da lanterna, a massa negra do lago mexia. A água agitou-se, e ondas de contrafluxo tocaram-no. Ele, contudo, não sentiu. Tinha olhos para um único ponto e a cegueira para todo o resto.
   Então, duas fileiras de dez mil dentes finos e pontiagudos feito espinhos surgiram em torno da bola luminosa. A boca pavorosa parecia sorrir por ter conquistado tão facilmente a presa. Embasbacado, ele se deixou levar para dentro dela.
    A língua áspera do ser das profundezas já sentia o gosto de sua próxima refeição quando ele, de repente, livrou-se do torpor. Rápido e com uma força que parecia não ter, num só golpe ele arrancou a lanterna do pêndulo que a ligava ao animal.
   O bicho debateu-se. Amedrontado e urrando de dor, fugiu. Sem a luz, não faria mal a ninguém. Estava condenado a passar os dias no escuro, alimentando-se com a ajuda da sorte – e torcendo para não ser engolido por outro monstro ainda maior.
    Já ele, tendo em mãos a luminescência, era agora capaz de se guiar pelos caminhos corretos. Foi o que fez. Vitorioso, com orgulho de si mesmo, ele encontrou um porto seguro, de onde retornou para casa carregando consigo a recompensa da batalha.
    Com um sorriso no canto dos lábios, Sorondo despertou do sonho. Deu de cara com Margô, que não escondeu a satisfação ao ver o mordomo finalmente abrir os olhos.
     - Olá, Bela Adormecida! Já estava na hora... – brincou a doutora.
    Só então percebeu que estava deitado em sua cama, debaixo dos lençóis. Mas, não era lá que ele deveria estar.
     - Onde estão as meninas??? Celeste, Beterraba e a outra...
     Margô fez sinal para que o homem se acalmasse.
     - Estão todas bem. Sãs e salvas. Fique tranquilo. Só uma coisa aqui ainda precisa de conserto.
    Assim que disse isso, a ruiva apontou para os próprios dentes da frente. Por um milésimo de segundo, Sorondo não compreendeu o gesto. Logo depois, porém, a dor do soco de Sanguinolência retornou à memória. No mesmo instante, ele passou a língua na frente da boca e – minha nossa! – estava com quatro dentes a menos!!!

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