7. A IDENTIDADE DO VISITANTE

     Sorondo era capaz de ver qualquer fato, acontecimento, ocorrência, experiência, passagem ou momento deste mundo refletido na superfície da água. Uau! Isso faz dele um superdetetive, pode estar pensando você. Mas, não é bem assim. Não é Sorondo quem procura os acontecimentos - e sim o contrário. Resumindo: ele não controla o que vê e não decide o que quer ver.
     Contudo, tal talento especial muitas vezes ajuda um bocado – e por mais de uma vez fez dele um herói. Como certa vez, há 25 anos, quando viu um menino chorando dentro de um copo d’água que iria beber. O menino zanzava de um lado ao outro e parecia perdido. Sorondo reconheceu-o: era o filho da mulher da esquina, que havia se esquecido como voltar para casa depois de ter ido à padaria a pedido da mãe.
     - Ele tem só seis anos. Nunca mais o deixe andando sozinho na rua – esbravejou Sorondo ao devolver o menino à maluca.
     Agora, enquanto limpava a privada, pela água ele via a movimentação no andar debaixo para se criar a fórmula antiamor. A cara estava amarrada. Discordou dos métodos empregados e sabia que não daria resultado. Quando viu Margô olhando encantada para a caixa, balançou a cabeça para lá e para cá, negando tudo.
     - A doutora não sabe com quem tá mexendo.
    Mas, Sorondo sabia. O homem de sobretudo e chapéu largo morava num sítio fora da cidade. Para chegar até lá, era preciso percorrer uma longa subida em estrada de chão, barreada quando chovia, de areia fofa quando o tempo estava seco. O mordomo de Margô conhecia-o de fama, de histórias que o povo conta, principalmente os antigos. Nunca o vira antes do momento no laboratório, nem pela água.
     O homem chamava-se Sanguinolência. Na verdade, este era o sobrenome da família, cuja tradição era tão remota quanto a história da formação do mundo - pelo menos daquele pedaço de mundo, que compreendia a cidade e sua redondeza. Por trás da casa em que morava, escondido atrás de frondosos pés de manga, Sanguinolência matava todos os seres passíveis de serem comidos. Da mais esguia minhoca ao mais espalhafatoso elefante, a vida sucumbia nas mãos assassinas daquele ser.
     Sanguinolência era dono do abatedouro, que antes fora de seu pai, que antes fora de seu avô, que antes fora do seu bisavô... O lugar era o principal fornecedor de carne aos mercados exóticos do estrangeiro, sempre ávidos por novidades e iguarias. Ganhava muito dinheiro, matava com qualidade e, por isso, havia muito serviço. Serviço duro, que não permitia espaço para sentimentos frouxos, como a piedade, a compaixão, a ternura, a candura – e o amor.

Nenhum comentário:

Postar um comentário